Comentários da autora sobre sua tese de Doutorado defendida em 28 de agosto de 2019 no Programa de Teoria Psicanalítica da UFRJ.
A questão do trauma em psicanálise já me interessa há bastante tempo, desde meus estudos na graduação em Psicologia na UFRJ. Em minha dissertação de Mestrado pude estudar a questão do traumático na adolescência, levando em conta a violência psíquica inerente a esse período do desenvolvimento.
Quando entrei no doutorado, a temática da maternidade passou a me despertar bastante interesse, devido em grande parte à minha própria vivência “na pele” do ser mãe, que muito me fez perceber a importância do reconhecimento desse momento como verdadeira crise psíquica para a mulher. A questão do traumático ampliado estava então novamente em evidência para mim.
Ao começar a me ambientar com a literatura específica referente ao tema da maternidade, me dei conta de que a maior parte das produções teórico-clínicas acerca do “materno” se referia basicamente ao processo de constituição psíquica do bebê, bem como aos entraves que o dificultam. De maneira geral, muito se fala sobre a importância da mãe para a sobrevivência e o desenvolvimento psíquico do bebê e de como as falhas maternas podem ter as consequências mais variadas; no entanto, pouca atenção se dá a quais são as repercussões que o fato de estar neste lugar de mãe podem ter para a mulher.
Além disso, percebi que se existe talvez um “senso comum” sobre a vivência da maternidade, ele é muito mais ligado a uma visão sublime e idealizada do “ser mãe”. Tal concepção leva a crer que toda mulher, ao se tornar mãe, encontraria em si mesma todas as respostas à sua nova condição, como uma atividade pré-formada, automática e necessária que esperasse apenas a ocasião de se exercer. Neste sentido, sendo a procriação algo naturalmente definido, imaginaria-se que ao fenômeno biológico e fisiológico da gravidez deveria corresponder determinada atitude materna.
Dizer que a gestação e o parto não criam uma mãe não implica dizer que tal experiência lhe seria indiferente – muito pelo contrário! –, uma vez que a realidade do corpo se impõe na vivência da maternidade com seu caráter de crise, exigindo que o psiquismo materno se reorganize de forma radical. Ao gestar um bebê, a mulher também deve forjar um espaço psíquico para seu filho e se preparar para construção, em seu psiquismo, de um lugar para si mesma como mãe, de modo que não é só o corpo da mulher que se transforma, mas todo seu psiquismo que passa a se preparar para constituir outro ser e também para se reconstituir em função de seu papel materno.
Foi assim então que cheguei à hipótese de que, se há um aspecto talvez inescapável da experiência da maternidade, este diria respeito muito menos ao instinto e ao amor materno idealizado, mas, principalmente, ao caráter necessariamente traumático dessa vivência. Essa hipótese principal constrói-se, portanto, em torno do pressuposto de que a maternidade traz consigo uma série de abalos e rupturas no psiquismo da mãe, que deles procurará dar conta apoiando-se em seus mecanismos psíquicos mais ou menos elaborados.
A presença inescapável de uma dimensão do traumático ampliado em toda experiência de maternidade me levou então a utilizar como fio condutor da pesquisa a questão das fronteiras e de como estas estão implicadas na problemática da loucura materna. Da loucura materna ordinária à extraordinária, essa vivência provoca na mulher uma série de angústias, o que permite caracterizá-la como verdadeira desorganização psíquica.
Iniciei então minha argumentação através da investigação da dimensão do materno e do papel que desempenha nos fundamentos da vida psíquica, compreendendo-o como a base sobre a qual se ancora o psiquismo. Examinei como se articulam a imaturidade do psiquismo infantil e a complexidade dos desejos maternos, levando em consideração que essa problemática se encontra em jogo na história psíquica de todos os sujeitos. No caso da mulher, particularmente, muito antes da experiência da gravidez e do tornar-se mãe, as vicissitudes do materno serão fundamentais para o exercício da maternidade, fornecendo o berço de suas futuras capacidades maternantes.
Através da articulação da noção de materno, particularmente, com os conceitos de narcisismo, feminilidade, complexo de Édipo, identificação e sedução, pude explorar o papel da dimensão do materno na fundação da subjetividade humana, tendo como premissa que cada experiência subjetiva está necessariamente inserida na lógica do a posteriori, comportando elementos numa relação de sobredeterminação. A questão da complexidade da temporalidade psíquica apresenta-se aqui como elemento fundamental de reflexão.
Tendo em vista a complexidade desta questão da temporalidade psíquica, um dos tópicos cuja articulação com o materno me interessei em investigar foi a problemática da adolescência. A partir, principalmente, das mudanças biológicas promovidas pela entrada na puberdade, a adolescência representa, na história psíquica da menina, a abertura do caminho para o acesso à experiência da maternidade. É na própria adolescência, portanto, que a questão do materno se coloca. Essa condição, uma das marcas na adolescência feminina, mobiliza energias, desperta ansiedades e conflitos psíquicos latentes. Novamente aqui me deparei com a noção de traumático ampliada, a qual já tinha explorado em relação à vivência da adolescência na minha Dissertação de Mestrado, mas pude agora articulá-la mais diretamente com a maternidade.
Solidifiquei então a hipótese da maternidade como vivência de um traumático constitutivo no psiquismo da mulher, tendo como pressuposto que as ressonâncias das transformações psíquicas e corporais da gravidez, do parto e do “ser mãe” possuem caráter inescapavelmente traumático. Diante do excesso que esse vivido veicula no psiquismo, passei a analisá-lo nas fronteiras entre o normal e o patológico, tal como nas fronteiras entre o eu e o corpo, entre o eu e o outro, entre as instâncias psíquicas, entre diferentes gerações.
A partir do aprofundamento de noções como “preocupação materna primária” tal como desenvolvida por Winnicott (Winnicott, 1956/2000) e “loucura materna ordinária” de acordo com a contribuição de André Green (2008), pude argumentar como a experiência da maternidade estaria ela mesma no limite entre o “normal” e o “patológico”, sendo necessária certa dose de “loucura ordinária” para uma relação mãe-bebê inicial saudável. Este estado de “loucura materna ordinária” pode ser entendido, dentre outros aspectos, como uma perturbação regressiva e dissociativa na dinâmica psíquica da mulher – no advento de sua condição de mãe.
As idéias trazidas por M. Bydlowski (2007) em muito me auxiliaram, em especial a noção de transparência psíquica na maternidade, ou seja, a suposição de um rebaixamento temporário do recalque durante a gravidez, que permitiria maior “permeabilidade” entre as instâncias psíquicas em função do retorno, no psiquismo materno, de certas fantasias e rememorações infantis, motivadas por esse afluxo regressivo. A revivência dos complexos infantis na experiência da maternidade é um elemento de fundamental importância para a compreensão da complexidade envolvida na dimensão do materno. É somente graças a este “rebaixamento” das defesas psíquicas que se torna possível uma efetiva abertura ao estado de loucura materna ordinária.
A experiência da maternidade – e mais do que esse fenômeno, o encontro com essa dimensão do materno – reaproxima o sujeito, no caso a mulher, de um funcionamento psíquico muito ligado ao sensório, tal como vivenciado nos primórdios da constituição psíquica, quando o ego se constitui a partir da relação com o corpo, na conceituação do que Anzieu (1994) denomina “eu-pele”. Com a chegada do bebê, a mulher tem novamente suas bases narcísicas abaladas naquilo que estas têm de mais próximo com o real do corpo. No que concerne às fronteiras entre o eu e o corpo, a verdadeira loucura da maternidade está ligada ao fato de que o corpo se torna habitado, como receptáculo para outro corpo que dentro dele vem a se desenvolver: um corpo estranho, mas que faz parte de si. De forma análoga, penso que se o corpo está habitado por um corpo estranho, o psiquismo estaria habitado e invadido por este lado de natureza, pelo encontro com esta dimensão “animal” de gerar um outro ser. Na experiência da gravidez, nesse tempo extraordinariamente curto de nove meses, a mulher vê seu corpo e seu psiquismo se transformarem de maneira drástica, para novamente se transformarem após o parto.
Com a chegada do bebê, a mulher se encontra diante de um estado de radical dependência desse pequeno ser que nasce e que é – num sentido mais amplo –“necessariamente prematuro”, exigindo da mãe cuidados para sua sobrevivência. Se a noção de “preocupação materna primária” aponta para a suposição de uma profunda identificação da mãe com seu bebê para dar conta das necessidades dele, a noção de “loucura materna ordinária” me remete para a ideia de uma profunda identificação da mãe com o bebê que ela mesma foi. A experiência da maternidade restitui, assim, ou faz reviver todas as feridas narcísicas antigas da mãe, seus traumatismos, seus lutos e tudo aquilo que ela recebeu como herança geracional, acessíveis sob o efeito da transparência psíquica e da suspensão do recalcamento. Este permite a abertura, no tempo da gravidez, de uma janela menos opaca sobre o inconsciente do sujeito mãe. Não apenas o bebê nasce necessariamente prematuro, mas a mãe também o é.
A partir das formulações de J. Laplanche (1987) procurei sublinhar como a dimensão dos cuidados maternos traz consigo a transmissão de conteúdos enigmáticos para a própria mãe, marcados por seu caráter inconsciente. Nesse movimento, ressaltei a relevância da questão da passividade pulsional: passividade do bebê frente aos conteúdos enigmáticos transmitidos pela mãe e, sobretudo, passividade da mãe em relação ao seu próprio sexual enigmático cuja transmissão se revela imperativa. Quanto à transmissão, me questionei sobre o fato de a mulher se ver agora no papel daquela que é transmissora das mensagens enigmáticas. Como é para mãe estar agora neste lugar de sedutora? Como ficam, nessa nova condição, os limites entre o eu e o não-eu? O que nela vem do outro? Como preservar sua constituição narcísica diante daquilo que foi herdado e do que será passado à geração seguinte?
Em determinados casos, esta transmissão ultrapassa certo limiar no universo intrapsíquico da mãe, o que me fez interrogar sobre a questão do trauma, no sentido de um excesso irrepresentável, tópico que me levou a explorar a noção do extremo da maternidade. O extremo se articula com a noção de intromissão de marcas traumáticas, elementos irrepresentáveis no psiquismo da própria mãe, os quais não conseguiram entrar numa rede de simbolização, mas tendo permanecido ativos, retornando compulsoriamente, sem abertura à historicização.
Nesses casos, a “loucura materna ordinária” torna-se “extraordinária”. Novamente a problemática das fronteiras assume papel de destaque em minha abordagem: em uma situação em que as fronteiras narcísicas se veem abaladas em razão da maternidade, assim como o sentimento de continuidade de si, surgem no universo psíquico da mulher angústias radicais, podendo provocar respostas paradoxais marcadas por uma superproteção possessiva do bebê e, ao mesmo tempo, por uma rejeição agressiva deste. Devido ao seu caráter inescapavelmente traumático a maternidade pode trazer à tona angústias de abandono e de intrusão que ameaçam a integridade do ego materno. No campo da loucura materna “extraordinária”, essas angústias são vividas de forma radical, configurando verdadeira psicopatologia fronteiriça.
A figura do baby-blues constitui um exemplo de resposta fronteiriça frente ao traumático inescapável da maternidade, a qual, conforme demonstrei, já comporta aspectos psiquicamente violentos. O baby-blues pressupõe um tempo provisório de suspensão, na fronteira entre o traumático estruturante e o desestruturante, estando inicialmente a mulher, em sua condição de mãe, numa espécie de “fora-do-tempo”, o que até lhe permite vir a integrar psiquicamente as transformações provocadas pela experiência da maternidade. Essa suspensão provisória do tempo já tem o caráter de resposta limite, mas tem um tempo de duração determinado.
Quando isso se apresenta com caráter de fixidez, em que tal suspensão não vem a se dissipar, ficando o psiquismo da mulher aprisionado no imperativo do repetir, estamos diante de um tempo congelado. Nesses casos, a entrada da lógica própria ao a posteriori encontra obstáculo de modo que só parece haver lugar para o “atual” do trauma. Não haveria para estas mães uma efetiva possibilidade de inscrição de determinadas marcas traumáticas no passado nem de projeção no futuro, marcas reavivadas pelo confronto com essa experiência disruptiva do materno.
Investiguei, então, duas figuras clínicas, marcadas por um “demais” ou um “muito pouco”, as quais me auxiliaram a pesquisar a questão do extremo da maternidade. Em um caso, haveria uma “hiperidentificação” com um bebê fantasiado como extremamente vulnerável, à beira da morte, precisando constantemente ser vigiado e salvo. Em outro, estaríamos diante de uma “desidentificação” característica da depressão materna, que impossibilita a mãe de ocupar seu lugar e cuidar do bebê. Ambas as respostas apontam para o extremo, para a impossibilidade de a mulher se conectar de maneira sintonizada com seu bebê.
Sobre a depressão materna mostrei que, ao se identificar com o bebê e reviver sua passividade originária, a mãe não suporta estar novamente nesse lugar vindo a atacar, ao mesmo tempo, seu próprio ego – ela se desqualifica, não reconhece suas potencialidades como mãe, e a possibilidade de vínculo com o seu bebê – e se afasta dele, se ausenta dos cuidados e se torna indisponível ao se deprimir: em vez de dirigir seu ódio para o bebê e atacá-lo, ela ataca violentamente sua própria imagem, aprisionando-se num estado de passividade.
Ao explorar a relação entre fronteiras psíquicas e impossibilidade de separação existente nessas situações clínicas que nos falam do extremo da maternidade, introduzi em minha reflexão a noção de transmissão de elementos encriptados. A chave para o estabelecimento dessa articulação reside justamente na presença do excesso traumático e da impossibilidade de separação. Nem sempre o psiquismo do sujeito é capaz de se apropriar, se separar e dar sentido àquilo que herda do outro. Nos quadros em que o traumático da maternidade se apresenta em seu caráter extremo, naquilo que consideramos em termos de “loucura materna extraordinária”, o processo de transmitir perde seu caráter estruturante, tornando-se alienante, de modo que o que é transmitido na relação mãe-bebê tende a neste se impor em estado bruto.
Considerando-se a complexidade da temporalidade psíquica, articulei a confluência dos três registros implicados no processo de constituição e no funcionamento psíquico – o arcaico, o primário e o edipiano – na problemática da separação na maternidade. Tais registros falam da passagem da menina ao estatuto de mulher; da transformação da filha em mãe; da transformação da autoimagem corporal durante o ciclo gravidez-puerpério; da passagem de uma relação dual com o bebê a uma relação triangular; da relação entre sexualidade e maternidade; da singularidade das revivências dos complexos infantis na experiência subjetiva da maternidade, particularmente no que diz respeito aos elementos inconscientes aí envolvidos. Cada um desses aspectos implica um abalo que exige de cada mulher uma reordenação psíquica.
Quando é possível dar um destino próprio a esse traumático, a crise psíquica da “loucura materna ordinária” poderá ser vivida como oportunidade para que o psiquismo materno dê sentido ao que ela recebeu de sua própria mãe, inaugurando criativamente uma nova dinâmica familiar na qual ela pode assumir um papel de mãe, cuidar e realizar um processo de separação do seu bebê. Mas, como vimos, nem sempre isso é possível.
As reflexões que realizei ao longo da tese me fazem considerar a importância de termos um olhar mais atento e cuidadoso sobre a experiência da maternidade, principalmente quando nos defrontamos com ela na clínica. A ausência, em grande parte dos estudos, de um olhar para a mãe – priorizando sempre o traumático da constituição subjetiva para o bebê – somado com a percepção cultural de que a maternidade é uma experiência sublime e de completude, não ajudam em nada no reconhecimento do sofrimento intenso em que se encontram essas mulheres que são acometidas por uma verdadeira psicopatologia da maternidade. É preciso que estejamos atentos para os impactos subjetivos desta vivência, que será sempre transformadora para a mãe, mas que poderá lançá-la em um estado de dor sem precedentes. Saber reconhecer quando estamos diante de uma loucura materna “extraordinária” é fundamental para a intervenção de um acompanhamento mais atento buscando a preservação da relação e do psiquismo da mãe e do bebê.
Referências
Anzieu, D. Le penser: du moi-peau au moi pensant. Paris: Dunod, 1994.
Bydlowski, M. “Las representaciones inconscientes durante el embarazo”. In: _____. La deuda de vida: itinerario psicoanalítico de la maternidad. Espanha: Biblioteca Nueva, 2007. p. 75-124.
Green, A. De locuras privadas. 2ª ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2008.
Laplanche, J. Noveaux fondaments pour la psychanalyse: la seduction originaire. Paris: PUF, 1987.
Winnicott, D. W. A preocupação materna primária (1956). In: ________Da Pediatria à Psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.